chorume
(em processo)

Aquela aguinha suja que escapa do saco de lixo, normalmente resultante da decomposição de alimentos, dá nome a um momento específico do carnaval brasileiro. Descreve a lenta e festiva dispersão nas ruas logo após o término do bloco; quando os corpos, antes demasiados juntos, têm dificuldade de voltar ao estado solitário de indivíduo, e permanecem agarrados uns aos outros como um último desejo de não se deixar singularizar. Nesse processo, que torna indistinguível o antes e o depois, tem como resultante um corpo que buscou se auto-ativar e aberto ao desejo de afetar-se.

* Pesquisa iniciada no contexto do Pacap 4 - Programa Avançado de Criação em Artes Performáticas / Lisboa 2020

Ficha Técnica

criação e performance Natália Mendonça
colaboração Isis Andreatta, Alina Folini, Sara Marques, Suiá Ferlauto, Josefa Pereira
agradecimentos Participantes do PACAP 4, Fórum Dança, João dos Santos Martins, Vera Mantero, Manoela Rangel e Fábio Zuker.
fotos Vitorino Coragem
teaser Aline Belfort

E depois de tudo o que aconteceu, resolvi caminhar. Escolhi um ritmo. 111 bpm. E me botei a andar no pulso, durante uma hora e meia. Caminhei de máscara e a quis tirar para beijar meu próprio braço, do mesmo jeito que fazia quando era adolescente e queria treinar pra quando beijasse pessoas reais. Agora, quanto tempo a gente vai ficar sem poder tocar uns aos outros? Então quis chorar e não conseguia. Abri meus olhos como em ‘Laranja Mecânica’ para ressecar minhas pupilas, e chorei.
O fake choro que vira choro real. Lipsink de ‘Nuvem de Lágrimas‘. E lembrei do dia que fui colocá-la no youtube e, entre as opções algorítmicas, apareceu também ‘Nuvem de poeira do Saara‘ e ‘Nuvem de gafanhotos no Brasil’. Escolha aqui seu apocalypse dos sonhos. E ri em 111 bpm. Até me sentir cansada, suada, cambaleante, pós bêbada e feliz . Sobrevivente já no 5º dia de chorume pós último bloco. Qual é o pulso médio das multidões de carnaval? Aquelas multidões tão apertadas que às vezes parece que se você subir seu braço, não consegue baixar nunca mais. Então lembrei da história do homem que um dia resolveu subir um dos seus braços e não desceu nunca mais. Algumas versões dizem que ele não estava contente com o tanto de guerras no mundo e quis inutilizar sua maior arma: seu braço de atirar. 22 de fevereiro a.c. (antes do corona) e eu estava no meu 1º carnaval em Lisboa. 22 de setembro d.c. (depois do corona) e o mundo inteiro não consegue mais premeditar nada. Projetar mais nada. Me lembrei da imagem do cavalo que só corre se for pra tentar ser o mais rápido de todos. Lá no século XIX, a palavra Performance era usada para qualificar o desempenho dos cavalos de corrida. E comecei a correr em 111 bpm. E lembrei da vez que andei de bicicleta sem blusa ou biquini ou soutien. Jamais vu é o contrário de déjà vu. É quando se tem a sensação súbita de nunca ter vivido algo como aquele momento antes. Nunca tinha sentido o vento batendo nos peitos antes. E percebi que, ter que ter sempre os peitos cobertos,
além de ser uma privação moral é também uma privação sensorial.
Às vezes o cavalo não quer ganhar nenhuma corrida. Só quer correr pra tomar um pouco de vento nos peitos.