MONSTRA
(2018)
uma coreografia-colagem para pessoas e plantas

Sequência de células coreográficas independentes – blocos de ações que se colam e se separam uns dos outros com certa brutalidade, como se fossem cortados com uma tesoura. Dentro de cada bloco há um enunciado comum, mas cada conjunto pessoa-planta responde a ele de forma distinta, construindo a cada novo corte uma não-totalidade: uma colagem, uma comunidade, um ecossistema, uma MONSTRA.
Entre o analógico e o digital. Entre o doméstico e o selvagem. Entre a delicadeza e o delírio. Entre o grito e o gozo. Uma existência de 335 milhões de anos vista em 360 graus.

direção Elisabete Finger e Manuela Eichner| criação e performance Kitty Katt, Danielli Mendes, Josefa Pereira, Mariana Costa, Patrícia Bergantin | também dançam Mariza Virgolino e Natália Mendonça | figurino Lu Mugayar | fotografia Debby Gram e Alex Takaki | video Estúdio Baile_Aline Belfort | produção Carolina Goulart | apoio à residência Casa Líquida e Casa Juisi


fotos João Cordioli
Entre as múltiplas abordagens possíveis para a dinâmica interativa entre a humanidade e a Terra, “Monstra” elege a via do corpo como dispositivo, e nos lança uma perspectiva feminista-terrana que, unificada, aprofunda os laços entre uma certa humanidade, feminina, e as camadas profundas da Terra.

Criada por Elisabete Finger e Manuela Eichner, “Monstra” evidencia, na injunção entre humanas, plantas e terras, que a vida (movimento) só se cria e se viabiliza pela interdependência de sistemas (animais, vegetais e outros) de raízes profundas e capilarizadas, que agem além da superfície visível.

Não à toa, na primeira imagem produzida pela obra, os corpos das cinco performers-monstras (Danielli Mendes, Kitty Katt, Mariana Costa, Mariza Virgolino e Natália Mendonça) se apresentam como extensão das raízes das plantas que cada uma equilibra sobre a cabeça.

A imagem sugere que seus corpos-raízes estariam, portanto, em terra profunda, abaixo das plantas, e é a partir dessa perspectiva, das profundezas, que a obra começa a se mover e que as cabeças-plantas das performers giram, em conjunto, numa observação concentrada e silenciosa da plateia de humanos em sua volta.

Na trama de temas que o Antropoceno evoca a partir das intervenções da humanidade na Terra – desequilíbrio climático, extinção em massa de espécies etc. – tanto o “contato violento” como a “ruptura acelerada” dessa interação (humanidade e Terra) são matérias de um mesmo problema, o do “como se vive”, do como se “deve” e se “poderá” viver, no presente e no porvir.

Se Gaia, a deusa mítica criadora de todos os deuses e seres, é comumente a figura feminina evocada a fim de nos alertar sobre a força do sistema Terra, como entidade que se autorregula, se equilibra e se regenera a despeito das ações humanas, a antropóloga americana Donna Haraway elege outra figura para a representação da inteligência da Terra e que, também, nos serve de chave para a leitura de “Monstra”: a imagem da Medusa, uma monstra ctônica, ou seja, que habita as profundezas da terra.

A partir da noção de Chthuloceno – “chthulu” é “terra”, e “ceno” é “do agora” –, Haraway propõe pensar na “terra do agora”, um lugar-tempo em que, segundo ela, não há cisão entre a humanidade e os elementos da Terra, que ambos formam um composto, e que a humanidade, portanto, é húmus em transformação: “Nós somos húmus, não somos Homo nem Antropos. Somos um composto, adubo, e não pós-humanos” (HARAWAY, Donna).

Em contraponto a um Antropoceno que alerta sobre “o fim da vida humana” no porvir, Haraway e o Chthuluceno não se fixam no fim, mas na “vida do agora” como um processo de contínuo enraizamento na terra, de ininterruptas interações e transformações interespécies.

É a partir desse vetor, direcionado às profundezas da terra, que Haraway vai alcançar a Medusa como figura representativa das forças terrenas, e por diferentes motivos: a Medusa vive no fundo da terra, e não no Olimpo; é uma figura feminina, e não o Antropos masculino; é mortal, pois vem do húmus e ao húmus voltará; e também porque Medusa representa uma inteligência tentacular — as cobras que saem da sua cabeça –, sistêmica, como a Terra.

“Monstra”, sem dúvida, manifesta essa qualidade de “inteligência tentacular”, e funciona, em cena, como um sistema corpóreo cujos braços e pernas (tentáculos) não cessam de criar conexões, relações, movimentos, ou seja, formas de vida.

Também vem de Haraway outro conceito-gatilho para a leitura de “Monstra”: a “sympoiesis”; faculdade de “criar” (poiesis) “junto” (“sym”), de criar-com. “Monstra” é justamente isso, uma obra que se “cria junto”, na interrelação entre suas partes, na interação de um sistema dinâmico em que se mover é transformar, recriar a realidade tal como posta até antes de se dar cada movimento.

No seu desenvolvimento, “Monstra”, portanto, nunca se fixa em uma única imagem, e em um modo de se mover. Durante a obra, as performers se aglutinam e se dissociam, constroem e desconstroem ciclos de movimento, compõem e se descompõem num solo que, aos poucos, é tomado por terra, plantas e fluidos.

Nesse chão, cada vez mais orgânico, as monstras riem, gritam, cantam, respiram, urinam, giram e se movem em cooperação, assumindo juntas as responsabilidades por cada ato e pelas possíveis respostas (response-abilities) dos espectadores – num dado momento, um fato fisiológico (o ato de urinar) parece afrontar e constranger uma certa moral que vê atrocidade no que é natural. Enquanto alguns deixam a sala, outros riem em cumplicidade diante da eclosão de um ritual a um só tempo tão orgânico como contranormativo.

Também chama a atenção o modo como “Monstra” contrapõe gestos de contato e cuidado com a terra – plantas que são conduzidas de mão em mão, o gesto de coletar as folhas do chão etc. – com um áudio que reverbera vozes masculinas de astronautas. Acionado em diferentes momentos, os áudios expressam, gradativamente, desde os preparativos até a celebração da chegada do “homem” à lua; feito tecnológico que promete salvação via afastamento, dissociação e autonomia do humano em relação à Terra. Em desacordo com o deslumbramento tecnofílico, e em contraponto à aventura fálica contra a gravidade, “Monstra” se move em direção contrária, se aterra e se aprofunda em sua expedição para os mundos do fundo da terra.

Se “mundos são compostos de relações tentaculares entre múltiplas espécies” (CHIODI, Vitor), certamente “Monstra” é um mundo em si, um outro real movente, um “mutante orgânico” que se reinventa continuamente em dinâmica não acelerada, tal como um polvo de águas profundas, ou como uma medusa do fundo da Terra.

“Monstra” é uma obra “monstra” porque cria e desfaz imagens enigmáticas e inomináveis, e porque, sob à luz do conceito de “monstro”, de Antonio Negri, busca “continuamente transformar nossa carne em novas formas de vida” (NEGRI, Antonio).

HARAWAY, Donna. “Staying with the Trouble: Making kin in the Cthulhucene”. Duke University Press, Durham e Londres, 2016.

______. “Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes”. Duke University Press, 2015.

CHIODI, Vitor. “Fazendo nós: fazer-com no Antropoceno”. ClimaCom [online], Campinas, ano.4, n.9, Ago. 2017.

NEGRI, Antonio. “Para uma definição ontológica da Multidão”. Revista Lugar Comum, 2004.



Texto: Luiz Felipe Reis